A INVISIBILIDADE DOS PRIMEIROS OCUPANTES DE JACAREPAGUÁ: OS SAMBAQUIS DA ESTRADA DA CAIERA
Atualizado: 11 de out. de 2021
Conhecemos muito pouco sobre o processo de ocupação humana da Baixada de Jacarepaguá, antes da conquista do território pelos portugueses e seus aliados, em 1567. Um dos motivos para isso foram as sistemáticas destruições dos sambaquis e de sítios arqueológicos pré-coloniais e de contato, ao longo do século XIX e XX. A maior parte dos sítios sequer chegaram a ser estudados, em sua maioria já estavam destruídos (poucos chegaram a segunda metade do século XX) e alguns foram objeto de salvamento por parte dos arqueólogos.
Da década de 1960 em diante houve um grande descaso no cumprimento da legislação vigente, por parte do poder público e das empresas construtoras, que participaram da corrida imobiliária na Barra da Tijuca (parte da planície ou baixada de Jacarepaguá), acarretando possíveis ocultações de sítios arqueológicos desconhecidos e destruição de outros registrados que se encontravam nos terrenos dos empreendimentos, para evitar paralisações e embargos às obras, onde foram levantados vários dos condomínios residenciais daquele bairro.
A única possibilidade de levantar, mesmo que parcialmente, informações sobre esses sítios arqueológicos desconhecidos seria realizando entrevistas com os trabalhadores dessas obras (engenheiros, operários e mestres de obras) que se dispusessem a revelar histórias não contadas, para que pudéssemos ter pistas sobre o que se evaporou de patrimônio arqueológico na poeira das obras, principalmente na Barra da Tijuca.
Entre os patrimônios arqueológicos perdidos em Jacarepaguá, ao longo dos anos, estão alguns sambaquis de mais de quatro mil anos, que seriam os mais antigos do nosso município. Os sambaquis (palavra que vem do tupi e que significa amontoado de conchas) são verdadeiros monumentos levantados pelas mãos humanas!! A arqueóloga Madu Gaspar os define como:
“uma elevação de forma arredondada que em algumas regiões do Brasil, chega a ter mais de 30 m de altura. São construídos basicamente com restos faunísticos como conchas, ossos de peixe e mamíferos. Ocorrem também frutos e sementes, sendo que determinadas áreas dos sítios foram espaços dedicados ao ritual funerário e lá foram sepultados homens, mulheres e crianças de diferentes idades. Contam igualmente com inúmeros artefatos de pedra e de osso, marcas de estacas e manchas de fogueira(...) Os restos que mais sobressaem na composição dos sambaquis são as conchas (...) e os mariscos.”
Esses sambaquis, por conta da grande presença de conchas, foram explorados durante o período colonial, imperial e até o início da república como caieiras. Para quem nunca ouviu falar da palavra “caieira” ela significa fábrica de cal, isto é, local onde se extraia o óxido de cálcio, substância branca que se obtêm reduzindo, pelo calor, as conchas dos sambaquis, para conseguir a cal, muito usada na construção civil até o início do século XX, quando foi substituída em larga escala pelo cimento.
A cal continua sendo usada nas fábricas de gesso e para acabamento de argamassa, agora extraídas principalmente de rochas calcárias e não mais de sambaquis, por conta da legislação que proíbe a destruição desses monumentos.
Os Sambaquis da Estrada da Caieira
Esses sambaquis que denominei Caieira I e II, na Estrada da Caieira não foram registrados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e não existiam citações a seu respeito feitas por arqueólogos. A existência deles foi demonstrada a partir do cruzamento das informações coletadas por Magalhães Correa, em 1931, em matéria publicada no jornal Diário da Noite, de 25 de novembro de 1931, e pela descoberta de anúncios referentes ao funcionamento de duas caieiras, em Jacarepaguá, perto da Porta D'Água, em diversas edições do Almanak Laemmert, entre os anos de 1891 e 1901.
Entre as principais características dos sambaquis fluminenses verificaremos que não ultrapassam de quatro metros de altura, que existe uma associação “entre o espaço de moradia e o local de sepultamento”, sendo que “o ritmo rotineiro de acumulação de restos faunísticos estava associado à alimentação” . Quando examinamos as descrições feitas pelo jornalista Magalhães Correa elas nos trazem a certeza que ali existiam esses locais de moradia e vivência dos povos sambaquieiros cariocas.
A reportagem com o título “O caminho da Caieira” publicada no jornal Diário da Noite, de 25 de novembro de 1931, segunda edição, página 13, escrita por Magalhães Correa descreve:
“Ao visitar estas paragens fui interditado de passar pelo Caminho da Caieira, mas fazendo a volta de 10 quilômetros encontrei por acaso um velho carioca na Estrada do Gabinal, homem de 70 anos, morador há trinta anos naquela estrada, antigo sacristão da matriz de N.S. do Loreto e trabalhador da Caieira, onde hoje passa o caminho do mesmo nome. Disse-me ele: - “nas escavações que praticamos, nos montes ou camadas superpostas de ostras, encontramos enormes ossos humanos, que foram enterrados em covas apropriadas dizendo que pertenciam a seres anti-diluvianos” (meros ossos dos mortos selvícolas). E continuando indicou-me os lugares em que existiam naquela época esses montes de ostras denominados “Sambaquis”. E que ainda hoje se poderá examinar em Itapeva, na fazenda do Engenho D'água e na chácara de madame Grimal. O “sambaqui” extinto do Caminho da Caieira está situado entre os Rios Caieiro (cuja ponte foi retirada ou levada pelas águas) e o Rio do Porto (onde dois troncos (toras), sobre bases de alvenaria, dão passagem) e distante do Oceano Atlântico 7 quilômetros em linha reta, e altura de 3 a 4 metros do nível do mar.” (grifos nossos)
O texto é claro ao caracterizar que o local aonde a Caieira funcionava era um sambaqui, pois a área tinha “camadas superpostas de ostras”, presença de “ossos humanos” e “altura de 3 a 4 metros do nível do mar”, características presentes nos diversos sambaquis fluminenses.
Na própria notícia percebemos também que existiriam mais três outros locais em que eram visíveis os restos de sambaquis, conforme informa Magalhães Correa: “em Itapeva, na fazenda do Engenho D'Água e na chácara de madame Grimal”, para os quais não temos outras informações.
A estas informações somamos as que estão contidas nos anúncios de diversos Almanak Laemmert, no período de 1891 a 1901, que demonstram o funcionamento de três empresas extratoras de cal dos sambaquis (caieiras), na região de Jacarepaguá:
Dias do Prado & Cia, que tinha como endereço Porta D'Água, e aparece nos anúncios dos anos de 1891; 1893- 1897; 1899 e 1901(ver Figura 1);
José dos Santos , que tinha também como endereço Porta D' Água, e aparece nos anúncios dos anos de 1893-1896;
Camillo da Silva Ferreira, cuja a caieira estaria situada em Jacarepaguá, e aparece nos anúncios de 1899-1901. É plausível que essa empresa tenha sucedido a de José dos Santos, explorando o mesmo local.
Não encontramos mais caieiras em funcionamento nos anúncios do Almanak Laemmert, em Jacarepaguá, após 1901. É possível que as empresas tenham parado de funcionar no início do século XX, em razão do esgotamento das jazidas. Pelos anúncios acima descritos pelo menos duas empresas funcionavam na Porta D'Água, o que reforça a narrativa de Magalhães Correa sobre duas jazidas distintas e, portanto, dois sambaquis (Caieira I e Caieira II).
Onde ficava a localidade Porta D'Água? Ela era uma povoação que ficava perto da igreja de Nossa Senhora do Loreto, hoje conhecido com bairro da Freguesia. Naquela época, entre o final do século XIX e o início do XX, o restante da região era área rural, por isso a referência da localidade de Porta D'Água para a localização das empresas de caieira, em Jacarepaguá. Magalhães Correa situa o sambaqui entre os rios Caieiro e do Porto. Olhando a Carta do Distrito Federal, organizada pela Comissão da Carta Cadastral, feita em 1893/ 94 e revisada em 1907, vamos encontrar os nomes do rio da Caieira ( o rio Caieiro citado por Magalhães Correa), do porto do Gabinal e um afluente do rio da Caieira cortando a estrada que passa no entorno da fazenda do Engenho d'Água. O caminho da Caieira aparece sendo cortado pelo Rio da Caieira, mas não tem nome (Figura 2).
Já a Carta do Districto Federal, de 1922, existente na Biblioteca Nacional, também mostra o caminho da Caieira, o rio da Caieira ganha o nome de Arroio Fundo, que mantém até hoje, embora apareça com um percurso diferente do Carta Cadastral de 1907. Assinala duas pontes que devem ser as que Magalhães Correa cita, entre o caminho da Caieira e a estrada do Gabinal, a fazenda do Engenho D'Água e o afluente do Arroio Fundo que poderia ser o rio do Porto. Abaixo um detalhe da carta (Figura 3), onde são assinaladas as áreas nas quais poderiam estar localizados os sambaquis.
Olhando o Google Maps, tentamos reconstruir o trajeto do caminho da Caieira, hoje inexistente e a localização da área dos sambaquis. A proposta aqui não é uma localização precisa, devido as poucas informações disponíveis, além das dificuldades acarretadas pelas modificações feitas pelas diversas intervenções urbanas no local, canalização dos rios, aterros, construção de viadutos, vias expressas e implantação da Cidade de Deus na região (Figura 4).
É provável que existissem outros sambaquis nesta área, pois geralmente os sambaquis não estão isolados nas paisagens e sim formam um conjunto como bem observou a arqueóloga Madu Gaspar, este poderia ser o caso dos sambaquis do caminho da Caieira.
Após visualizarmos sua possível localização a pergunta que não quer calar é como se formaram sambaquis tão distantes do mar? Isso fica para um próximo artigo!